"O meu ideal de beleza não tem nada a ver com aquilo que sou"

Tem mais de 30 anos de carreira e continua a sentir-se insegura
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É uma peça de texto leve, divertido e inteligente, e Alexandra Lencastre está sempre em cena nesta Plaza Suite, quase três horas em que não descansa um segundo (sim, há intervalo mas de certeza que ela não consegue desligar).

A plateia está cheia, sobretudo de mulheres que vão rir-se até às lágrimas com as peripécias de dois casais em apuros desempenhados por dois atores que vão diretos às nossas memórias e aos nossos amores instantâneos: ela e Diogo Infante, hilariantes e absolutamente senhores da situação.

A entrevista foi feita no camarim que partilha com Helena Costa, que tem o segundo papel feminino na peça do norte-americano Neil Simon (o segundo papel masculino é de Ricardo de Sá). O Teatro Tivoli BBVA está em obras, tudo um pouco confuso, há poeira no ar que não pode fazer bem às vozes dos atores.

Alexandra chega a tentar passar despercebida, um boné, a gola do casaco levantada e óculos escuros, mas poderíamos apostar que ninguém passa por ela sem reconhecê-la. Acaba de fazer 50 anos e está, como sempre foi, "formosa e não segura".

Continua a atribuir os méritos a outros, nunca é ela quem faz as coisas bem. Mantém ansiedades, pesadelos, superstições desta profissão em que tudo lhe é difícil de atingir, mesmo se a vemos e achamos que aquilo flui sem problemas. Como Alexandra confessa, no dia em que encontrar um caminho todo muito certinho deixa de ser atriz.

Em Plaza Suite, faz papéis substancialmente diferentes, embora sejam duas mulheres em situações conjugais. Algum paralelo com a sua experiência?

O Diogo chegou a minha casa com uma pastinha e deixou a peça do Neil Simon. Na verdade, é uma peça com três atos e foi decidido com o Adriano Luz, o encenador, só fazer dois, porque ficaria um espetáculo muito longo. Chorei imenso a ler o primeiro, achei que não era uma comédia mas uma tragicomédia. O segundo, achei que não era capaz de fazer, e sugeri nomes muito conhecidos - Maria Rueff, Rita Salema, Rita Blanco. "Eu não tenho essa veia cómica, isto não vai ter graça nenhuma!" O Diogo riu-se imenso: "Estás a ler isto como mulher."

Revê-se nessas situações que a fizeram chorar?

Na primeira, sim. É um registo mais naturalista, com um humor ácido, e passa-se por uma zona dolorosa. Esta mulher tenta tudo para salvar o casamento e aí, sim, revejo-me. Sente que aquele homem está a fugir-lhe e quer recuperá-lo. Gosta dele e gosta do casamento, mesmo com as chatices e com o facto de ele trabalhar muito. Se calhar, até aceitava que ele tivesse uma amante. Eu estou sozinha há seis anos e estou bem assim, não me consigo imaginar, agora, a viver com outra pessoa - nem com uma que já tenha vivido nem com uma nova. Não faz sentido, já tenho o meu espaço e os meus dias muito ocupados. Não tenho mesmo espaço físico, nem emocional nem geográfico, porque organizei a casa de maneira a não caber lá ninguém. E já tenho muitos bibelôs e os homens odeiam bibelôs, não caberia nenhum objeto pessoal deles. Acabou. Fui casada duas vezes e fui sempre uma lutadora, no sentido de não se perder quando ainda se gosta... Ou seja, acabar quando se gasta o amor e não quando se desgasta a relação.

Há uma grande diferença?

Há. Uma relação pode estar desgastada e ter ainda hipótese de sobreviver. Está doente, está amachucada mas tem de se dar uma injeção disto ou daquilo, quer dizer, tem de se perceber, tem de se trabalhar, tem de se procurar um terapeuta, fazer umas férias conjugais, seja o que for. Podem encontrar-se soluções. É muito interessante, da parte do Neil Simon, terminar a peça em aberto: nós não sabemos se aquele homem volta ou não. E ela também acaba num tom ambíguo. O que vai fazer? Ela quer companhia, é uma mulher sozinha. Talvez eu me identifique com essa solidão.

[citacao:Li o texto e disse ao Diogo: eu não tenho essa veia cómica, não vou ter graça nenhuma!]

Mas essa solidão magoa-a?

Não, não é uma solidão que magoa, e já percebi que gosto de estar sozinha. Divirto-me, encontro os meus prazeres, gosto de ler e de estar sossegada. Aprecio muito os meus ritmos e que ninguém os perturbe. No entanto, se penso muito nisso, ou seja, se me observo de fora - como tive de fazer para poder construir a personagem -, aí magoa um bocadinho. A personagem do Diogo diz: "Gostava de começar tudo outra vez, de começar do zero." E eu, às vezes, tenho essa nostalgia. Não é para fazer diferente nem é arrependimento, é perceber: quanto tempo é que falta? Muito não será. E que tipo de tempo? Tempo com alguma qualidade? Com alguma graça? Sim, há uma identificação forte, mesmo quando o público se ri muito - e temos tido gargalhadas, o que é compensador e gratificante, todas as noites, em todos os espetáculos - mas eu não deixo de interpretar a personagem por dentro.

A segunda parte é mais caricatural, faz rir mais.

São dois bonecos. Tentámos muito humanizá-los, com a direção do Adriano Luz e a tradução da Luísa Costa Gomes, que é muito importante. Há pessoas assim, têm uma vida que é um perfeito disparate mas não se questionam. Aquela mulher nem quer saber se ele tem amantes, porque é que chega tão tarde a casa. Nem repara que estão sempre a discutir: ela vive com ele e há de ser até morrer. A filha quer a felicidade, quer mais... Mais!? Eles estão bem, ele tem um negócio, chega a casa, tem o jantar. São pessoas muito mais simples, de outro estrato social, com outra experiência, e aí tive de fazer outro tipo de trabalho. Fui atrás do Diogo.

Atrás do Diogo em que sentido?

Nós somos muito amigos e, nesta peça em especial, ele tem sido uma âncora muito forte. Estou com as gravações da novela e ele está disponível. Também teve um ano difícil: fez o Cyrano, fez a Ode Marítima, entrou nos Jardins Proibidos mas, depois, terminou e teve três meses de férias. Conseguiu recuperar e foi o motor que dinamizou isto tudo, que fez força para que isto fosse para a frente. Eu fui à boleia dele porque ele, muito rapidamente, apanhou...

Apanhou a personagem?

Exato. Um homem que é muito diferente do primeiro. O primeiro está obcecado pela juventude, pelo físico e o ginásio, as dietas, os músculos, o não ter barriga. E o outro é o oposto: quer comer e beber bem, ser feliz e fumar um charuto e se rebentar, rebenta. E eu fui construindo a mulher desse Rui, uma mulher um bocado fora. Ele não podia ter uma estampa, porque guardava-a, não a levava a sair; e tinha de ser um a mulher com genica, ele precisa disso. Eles precisam muito um do outro, e uma das razões que nos levou a encontrar um caminho para humanizá-los foi eles precisarem um do outro. Há uma cumplicidade implícita. Estão juntos há tanto tempo que fazem parte um do outro.

Disse que não tem o registo cómico. Desculpe discordar, acho que está completamente nesse lugar. Já tinha feito comédia em palco?

A única comédia que fiz era também ácida, Quem Pode Pode, de David Mamet, há cinco anos, no Politeama, com o José Wilker e o Sérgio Godinho, uma encenação do João Canijo. E fiz pequenos apontamentos de comédia, tanto em Cascais, como no teatro da Graça, como em televisão, mesmo em programas de humor. Sempre me senti - como se diz agora - fora da zona de conforto, muito desconfortável.

Mas no Plaza Suite sente-se desconfortável? Não parece.

Aqui, acho que encontrei uma zona de conforto. Aprendemos sempre com os grandes atores. Eu tive a sorte de começar com duas grandes atrizes, a Eunice Muñoz e a Carmen Dolores. E tenho tido também a sorte de trabalhar com o João Perry, que é um excelente mestre. Aprendi que não podemos ter a preocupação de fazer rir, e depois, se conseguirmos, acabamos por divertir-nos também. Eu ainda estou na fase de sofrer. Às vezes há um momento ou outro em que me permito estar à vontade, geralmente quando observo o Diogo.

Na noite em que assisti à peça, os dois tiveram um ataque de riso e desatou tudo a bater palmas, o público foi muito carinhoso.

Ia-me dando uma coisa. Achei que me ia saltar o coração e pensei que ainda bem que havia ali bombeiros porque ia parar ao hospital. Foi a primeira vez que tive um ataque de riso em palco. Uma vez estive quase, mas aguentei. Foi com a Graça Lobo, na peça do Miguel Esteves Cardoso Os Homens, que não era comédia, mas o Miguel foi para Nova Iorque em lua-de-mel, e a Graça transformou aquilo num disco-bar. Era um disparate inteligente, por causa da escrita do Miguel, e a encenação da Graça tornava aquilo um absurdo, transformou-se num universo feminino ímpar. Gozava imenso com os homens e assumia o lado das mulheres burras e disparatadas.

O que provocou o ataque de riso?

Nós comíamos um iogurte e sentávamo-nos em duas cadeirinhas, viradas para o público, no Teatro da Trindade. Ela engasgou-se e o iogurte foi parar às pessoas da primeira fila. O teatro inteiro desmanchou-se a rir e eu fiquei entre o riso e as lágrimas, num desespero, a pensar que o pano ia descer. Ela riu-se imenso, soprou para cima de mim e ainda apanhei com um bocadinho de iogurte. Como quem diz: "Enjoy it! Vamos para a frente! The show must go on, não fiques aflita!"

O que aconteceu na minha sessão do Plaza Suite? Enganaram-se?

Eu pergunto onde é que ele tem o cartão de crédito. Mas enganei-me e perguntei: "Onde é que meteste o visa?" Ele olhou para mim e eu li uma legenda, que não posso agora dizer, e tenho a sensação de que o público também terá lido qual...

Isso quer dizer que está na personagem de tal modo que muda palavras naturalmente?

É conveniente não mudar muito mas esse é um dos grandes segredos. Dominar um texto é dominá-lo ao ponto de torná-lo nosso, apropriarmo-nos dele. Se eu disser duas vezes "mas", em vez de uma, porque estou a refletir, fico muito perto da verdade, e esse é o primeiro grande objetivo. O facto de eu me ter dado a possibilidade de alterar o verbo tem a ver com isso. Claro que isso se passou ao nível do inconsciente. O percurso em teatro é fascinante porque as personagens vão fazendo parte de nós e nós parte delas. É uma mistura que já me fez muita confusão, por vezes ainda me perturba, mas faz cada vez mais sentido. Se não for assim, não merece a pena.

[citacao:O Diogo vai todas as noites ao camarim gozar comigo, rir-se das minhas ânsias]

Em televisão, cinema ou teatro os tempos são diferentes, não é? No teatro é mais fácil entrar na personagem?

Entramos de maneira diferente. Em televisão, sabemos que podemos repetir mas, ao mesmo tempo, a velocidade com que se trabalha leva--nos a ficar mais treinados, memorizamos mais facilmente. Somos obrigados a responder a estímulos, faça frio, faça chuva. Trabalhamos com três equipas, realizadores diferentes, ambientes, tensões, emoções, exigências, e temos sempre de responder. E muito rapidamente, porque podemos passar de uma cena em que estamos a chorar imenso e na outra é uma festa de anos e a seguir há uma criança que nasce.

E as cenas não são sequenciais, não seguem a história?

Nós não trabalhamos em sequência, trabalhamos em função do décor. A produtividade está em primeiro lugar. A anotadora tem tudo escrito, tem os raccords do anel e do cabelo e do vestido e do sapato. As boas anotadoras - e temos muito boas anotadoras, é uma profissão maravilhosa em que as pessoas se dedicam imenso - fazem também os raccords emocionais. Têm o nosso percurso: "Não te esqueças de que ela vem daqui e tu saíste triste." Quando estudamos o texto, fazemos essa notinha, mas é bom sentir esse apoio. Há uma equipa inteira a tomar conta para que a coisa não fique despropositada.

Em cinema também, imagino.

Em cinema, voltamos a ter as sequências alteradas, é muito raro termos realizadores com possibilidades financeiras de filmar em sequência. É preciso guardar religiosamente as emoções, os estados de espírito, fotografar isso. Por isso é que às vezes se diz que os atores são muito egocêntricos. Eu hoje já não diria isso. Acho que nós estamos muito ocupados.

Interiormente?

Sim. E estamos muito preocupados. Somos chatos, podemos ser difíceis de aturar, porque talvez haja uma ligeira obsessão pelo trabalho. Mas em teatro, de facto, é onde se pode criar um tempo mais parecido com o real. Embora não seja a realidade, é a nossa realidade durante este tempo, em que mais nada acontece a não ser o que está a acontecer em cena. Isto comove-me.

Tem consciência do público?

Alguma, mas não vejo ninguém. Fujo, não procuro o olhar direto para a plateia. O público é um todo, absolutamente essencial, mas é uma energia, uma entidade que me devolve coisas muito importantes e ajuda a que o espetáculo continue.

Sente a reação do público?

Sim. Até, às vezes, um suspiro. Ouve-se um suspiro e percebe-se quando as pessoas estão incomodadas. No Teatro Aberto, no Fernando Krap Escreveu-me Esta Carta, senti pessoas à procura de um lenço para se assoarem. E nós estávamos tão dentro mas com uma consciência atuante tão presente que isso não nos deixava desconcentrar. A peça continua, o texto segue. Isso é muito bonito, é o que torna o espetáculo diferente todas as noites, único e irrepetível. É triste e é maravilhoso.

Ia muito ao teatro, em miúda?

Ia, mas não queria ser atriz. Quando era pequenina, queria ser bailarina. Os meus pais não me puseram no ballet porque andava na Academia de Santa Cecília e era muito caro. O meu pai sempre gostou muito de teatro mas na família não existia ninguém ligado ao teatro. Agora sim: a minha filha mais velha está no Con-servatório. A mais nova tem 17 anos, foi para Artes e ainda está indecisa entre Arquitetura e Pintura.

Esse é o seu núcleo familiar, o seu grande trabalho?

Este triângulo manteve-se unido ao longo destes anos todos, a conviver na mesma casa, a passar estas experiências e a falar do futuro, do que se gosta e se vai escolher. A escolha é uma coisa terrível quando elas são tão novinhas. A Margarida muito cedo decidiu que queria ser atriz. Achei que ia mudar porque escreve bem e era muito boa aluna a Português. Pode ser que faça dramaturgia ou que escreva uma peça de teatro. Mas ela gosta de representar e parece-me que tem talento. Ainda está numa fase boémia. Esta nova geração faz-me lembrar a geração da Maria do Céu Guerra. Quando eu comecei também ia para a boémia, ver a Natália Correia - eu ia ao Botequim! Ficava encantada.

A vida boémia dos artistas?

Exatamente. É muito engraçado. Há umas personalidades que se destacam na noite. Umas dizem poesia, outras cantam o fado a capella...

São a próxima geração, com menos preconceitos e mais criativa?

Nós fomos preparados e também fomos mais espartilhados. E convivemos muito com a questão da diferença. Toda a diferença era uma maçada. Nesse sentido, tanto eu como o Piet-Hein fizemos um trabalho simpático com as nossas filhas, e isso também tem a ver com o meio, os colégios, os amigos, os pais dos amigos, as pessoas com quem se foram relacionando. Há uma homogeneidade, elas não são diferentes das outras miúdas e miúdos com quem convivem. E têm uma cabeça mais aberta.

Ao vê-la no palco, pensei na Rua Sésamo. Apesar de serem personagens com densidade, há ali uma alegria e uma leveza que me fizeram lembrar da Guiomar.

Ainda ninguém me tinha dito isso, que engraçado. O palco ajuda, rejuvenesce um bocadinho. Sinto-me muito bem acompanhada, temos uma equipa muito coesa, forte. Estão lá a apoiar-me mesmo que chegue muito cansada e que tenha aquelas minhas ânsias.

Continua com isso?

Estou um bocadinho pior. Rezo imenso e sou supersticiosa. O Diogo todos os dias vem ao camarim cinco minutos só para gozar comigo.

Diz ainda o texto, todos os dias antes da sessão?

Digo muitas vezes. Neste palco não consigo, é muito grande. Se fosse um palco mais pequenino, se calhar ia, sentia-me mais sossegada. Mas digo, pelo menos, as partes em que me sinto insegura ou em que, na véspera, tive alguma hesitação ou o público riu mais e eu não soube fazer a pausa. O Diogo goza imenso comigo: "Se ainda não decoraste até agora, meu amor, não vale a pena!"

O Diogo é um homem muito corajoso e tem um talento enorme. Apesar de eu o conhecer muito bem, deixa-me sempre surpreendida. Ele dá-me boleia para casa muitas vezes e há noites em que acho que está muito cansado... Mas não. Ele tem sempre imensa energia e isso é muito contagiante. Essa energia que me disse que viu em mim devo-a, também, ao Diogo. Ele diz-me: "Não te esqueças de que há um brilho que tem de existir em comédia."

Concorda com essa ideia?

Agora falou na Rua Sésamo, e de facto a função da Guiomar era - não só mas também - a de intermediar as relações das crianças com os adultos. Tinha de ser mais explícita, brilhante, cativante para captar a atenção das crianças e depois explicar aos adultos o que se estava a passar. Se não eles não a teriam como cúmplice e não desabafavam. Nesse sentido, concordo consigo. E há uma certa jovialidade em comédia. Fiz A Gaivota de Tchékhov no Teatro da Graça. Há duas mulheres, a Nina e a Masha, que têm a mesma idade. A Nina é uma força da natureza, uma miúda que cheira a alfazema, parece que voa, toda ela é brilho, encanto e expectativas, vontade de viver e de explorar as coisas. E a Masha é uma menina triste que está à espera de que o tempo passe. Podemos, através destas duas figuras, encarar a comédia e a tragédia ou o drama.

Na Plaza Suite as duas têm essa energia?

De facto, as duas têm um brilho porque acreditam muito em tudo o que fazem e dizem. Cada coisinha, por muito pequenina que seja, é um pormenor importantíssimo, que vai acrescentar qualquer coisa à história. Isso, obviamente, tem de estar também no texto, não podemos inventar, mas tem de ser muito bem aproveitado e capitalizado pelo ator.

E o trabalho com o encenador? Neste caso, é o Adriano Luz mas já trabalhou com encenadores e com realizadores de todos os géneros.

E de alguns tenho muitas saudades. O Adriano foi um cavalheiro. Conhe- ço-o bem, há muitos anos, como ator. Divirto-me imenso com ele, é um ator desconcertante e é muito completo, à semelhança do Diogo. Têm a mesma capacidade de fazer rir e de assustar. Já vi o Adriano virar--me as costas em cena e quando olhou para mim achei que ele me podia matar, naquele momento. Com um olhar baço, uma coisa tipo Sean Penn, um olhar mortífero. Tive medo dele. É um ator extraordinário. E já me fez chorar a rir, também. Tem uns tempos muito próprios, é um ator especial. Há atores que são parecidos uns com os outros ou que se podem confundir. Ele não.

Disse que ele foi um cavalheiro na preparação da peça. O que significa isso?

Neste processo, eu senti-me um bocadinho esgotada, entre a novela e os ensaios, a trabalhar todos os dias. Ele teve muita paciência e nunca se exaltou, mesmo com atrasos, porque a gravação atrasou, não podia sair. Foi sempre um cavalheiro, eu senti-me como se ele me beijasse a mão quando eu chegava em vez de me dar um ralhete. Eu estava à espera de um ralhete e ele: "Ainda vamos jantar." "Mas eu já estou meia hora atrasada!" "Não vamos começar o ensaio sem jantar." Tinha essa preocupação. Senti--me muito acarinhada por ele e bem conduzida. Eu dizia: "Eu não estou preparada", e ele: "Nunca vais estar preparada. Vais chegar ao último dia e dizer que não estás preparada. E quando for o último sábado, vais dizer que não estás preparada para a matiné." Encontrei alguns pontos em comum com ele: ataques de pânico e coisas assim, ele também já passou por isso. Eu tinha a ideia de que era um homem bastante forte, pés na terra e tal, e descobri uma fragilidade muito bonita e encantadora.

A Alexandra continua a ter essa fragilidade e esses pânicos. Vai ser sempre assim?

Sim. Às vezes estou à vontade, mas muito raramente, numa cena ou noutra numa novela em que não há texto nem cenas de ação, a conduzir o carro, por exemplo. Mas isso é raro acontecer. Normalmente arranjam-me texto e muita coisa para fazer. Mas só assim, nessas alturas, é que me posso permitir distrair-me um bocadinho, deixar-me levar, não levar as coisas muito a sério, não sofrer, conseguir telefonar para casa. Eu desligo mesmo o telemóvel. Mesmo hoje, quando se vê toda a gente com os telemóveis à mesa, o que é um suplício, consigo desligar. Preciso mesmo de continuar a criar compartimentos estanques, se não entro em pânico, fico em terror. Tenho de me sentir toda inteira.

Sempre que eu disse qualquer coisa elogiosa, respondeu: isso é graças ao Adriano Luz, ao Diogo Infante. São sempre os outros?

São.

Mas não vê que é a sua qualidade que faz a diferença?

Isso é sempre tão subjetivo...

Nós, na plateia, sentimos isso. Aquele mesmo texto feito por outras pessoas podia não funcionar. É bom também porque são vocês.

É muito querida em dizer isso. Mas nesta profissão, e na sua também, há sempre quem goste muito e depois vem uma pessoa que nos põe em causa, não é? E fico um bocadinho desconcertada, não estava à espera. Uma pessoa que, se calhar, foi um bocadinho agressiva e não era necessário. Acho que devemos aproveitar esses momentos para nos irmos questionando. Não é preciso ser um massacre, mas às vezes é. Às vezes, subir a um palco é de uma responsabilidade tão grande. Há uma zona que tem de estar em ferida. Não quer dizer que seja uma ferida que não esteja a ser tratada, se calhar, de forma quase miraculosa, e que no fim do espetáculo não sare durante umas horas. Mas no dia seguinte volta a abrir. Acho que é daí que vem a criação, também.

Continua a ter um pesadelo em que era como a Alice, ia ficando cada vez mais pequenina?

Continuo. Continuo a ter esses sonhos e a desaparecer em casas que não reconheço. Hum, hum. Por acaso continuo, sim.

Mas é uma mulher adulta, não é uma miúda embora continue a parecer...

Sim. Já sou entradota, como se costuma dizer. Já sou cota, como se diz agora. Mas há coisas que ficam para sempre. Acho que aos 7 ou aos 9 anos já era um bocadinho assim. Também jogava à macaca e conseguia distrair-me mais, mas já tinha alguns pesadelos recorrentes. Não sei. Nascemos assim. Hoje noto as pessoas cada vez mais à procura de respostas, seja em terapia quântica, na psicoterapia, que voltou a estar outra vez na linha da frente. Quer dizer, as pessoas buscam respostas de uma forma natural ou sobrenatural. Não são respostas para a vida ou para a morte, mas para se explicarem. E para se reeducarem, para se melhorarem e para sofrerem menos, principalmente. Eu acho sempre, e isto não é bem uma superstição, isto é quase uma certeza, que se eu encontrar um caminho todo muito certinho, tenho de deixar de ser atriz, passo a fazer outra coisa. Como se eu arrumasse as gavetas todas e depois me faltasse material onde ir buscar.

Mas isso causa-lhe sofrimento?

Não quero dizer que tenha de ser uma sofredora e estar sempre mal. Não. Posso ser uma pessoa alegre e gosto imenso de chegar a casa e ter as minhas filhas e elas terem lá os amigos, e os meus pais ainda aparecerem e estarem bem e ter esses momentos de lazer supersimples e estar à lareira, só com conversas sobre os bisavós ou histórias antigas ou projetos das miúdas. Mas cada coisa no seu sítio. E não é agora que eu vou deixar de ser assim.

É escusado. Está muito bem assim. Vai fazer mais operações plásticas? É muito bonita e está ótima. Não acha que as rugas podem ser bonitas? Basta olhar para a Vanessa Redgrave...

Ah, a Vanessa Redgrave! Mas ela é especial. Tem uma força, aquela mulher.

Aquilo que ela tem lá dentro vem cá para fora, transborda. Não precisa de se preocupar com as rugas.

Eu já não estou muito preocupada com as rugas. A intervenção cirúrgica que eu queria fazer mesmo era a blefaroplastia [cirurgia que levanta as pálpebras], porque já estou a perder um bocadinho de visão periférica. Isso chateia-me um bocado. O meu pai também tem, às vezes ressente-se disso.

De facto, eu às vezes vejo fotografias minhas muito mais nova e acho que era outra pessoa. Fui-me modificando muito. Em criança era muito redondinha e tinha um nariz muito pequenino e parecia que ia ser muito bonitinha. Depois fiquei uma adolescente muito feia, muito angulosa. Depois fiquei uma adulta assim mais ou menos. Depois, só com as maquilhagens e com as ajudas dos diretores de fotografias e com as tintas dos cabelos e essas pequenas coisas é que fui ficando mais ou menos engraçada. Porque o meu ideal de beleza não tem nada a ver com aquilo que eu sou. Nada, nada, nada, nada!

Faz-me lembrar a Michelle Pfeiffer. Perguntaram-lhe o que é que ela achava dela própria e respondeu: "Sou horrível, ponho os pés para fora quando ando!" Ninguém viu isso, está claro.

Isso faz parte do nosso reconhecimento. Penso que vivemos numa época em que, por um lado, é importante para um ator - neste caso, uma atriz - ter uma máscara e não ficar de repente sem expressão ou ficar com ar estranho, que não seja reconhecido. Por outro lado, vivemos numa época em que a imagem tem um peso enorme. Sofremos uma pressão muito muito grande e começa desde muito cedo. Ou seja, há miúdos de 20 e tal anos que já se estão a operar, já se estão a corrigir. Ninguém pode ter o nariz comprido. E depois vêm do Brasil - quem vai ao Brasil fazer uma novela - e cosem todos as orelhas, diminuem o nariz, o queixo não sei quê. Ou seja, tudo o que vai crescendo ao longo da vida é logo corrigido, de cinco em cinco anos. Eles até têm uns prazos, para não chegar a um ponto em que fique pendurado e se note. Vivemos um bocadinho entre uma coisa e outra, não é?

Mas a Alexandra , em grande medida, é uma pessoa caseira, não faz vida social de andar nas festas.

Pois não. Nunca fui. Houve uma altura que tive um bocadinho mais a fama que o proveito. Mas eram mais festas de obrigações profissionais. Fui embaixadora de umas joias, e depois fui embaixadora de uma marca de carros. Isso obriga-nos a certas presenças. Agora, tenho pena de não ter algumas regalias mas estou muito mais sossegada. Não tenho de ir a lado nenhum.

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